terça-feira, 5 de junho de 2007

APRENDIZAGEM DA ORTOGRAFIA E DISORTOGRAFIA




Comecemos por uma definição básica de disortografia: no campo da psicolingüística. é a dificuldade no aprendizado e domínio das regras ortográficas, associada à dislexia na ausência de qualquer deficiência intelectual.



Neste artigo, pretendo, a partir de um relato de um tio sobre a disortografia de um sobrinho e as grosserias que o mesmo sofre por conta dos seus constantes erros de grafia, apresentar algumas dicas lingüísticas e psicolingüísticas para a intervenção em casos de crianças que apresentam dificuldades específicas de ortografia. Quando ensinamos ortografia com fundamentação lingüística e pedagógica, não há lugar para palmatória, para castigo ou violência escolar.



No relato, o tio, que é educador, diz o seguinte: “Tenho um sobrinho de nove anos e não agüento mais ver o garoto apanhar todos os dias por escrever errado sendo a criança inteligente e criativa”. E prossegue: “ O que acontece com esta criança é quando ao copiar um texto ele esquece acentos e troca algumas palavras, a mãe sem paciência bate muito no menino e por muitas vezes faz o garoto copiar textos e textos mas não adianta”. E me faz um apelo “ Seria muito grato se o Sr. me respondesse para que de alguma forma eu orientasse a sua mãe de uma forma teórica e prática para podermos sanar ou amenizar o sofrimento deste garoto”.
Comecemos, então, pelo fim, isto é, encarando a ortografia no meio escolar numa perspectiva cognitiva e neurológica. A ortografia, já disse em outros artigos, é a capacidade de o aluno recordar palavras corretas ou formas lingüísticas socialmente aceitas. Quando a criança erra, na verdade, erra quanto à ortografia, desviando-se do modelo estabelecido pela gramática escolar ou pela comunidade lingüística em ascensão social. A ortografia está, pois, associada à questão de variação lingüística, às formas de determinada classe social e, como sabemos, a escrita escorreita, é uma forma particular de escrita da classe dominante, emergente cultural e economicamente.
Quanto à pisa ou castigo como estratégia de ensino, conforme relata o tio, não só tem um caráter medieval, como pedagogicamente, deve ser descartada do ensino da língua materna. O ensino com palmatória além de não ser realmente eficaz, só maltrata, interdita o corpo, inibe o aprendizado da língua e não tem nada de pedagógico ou de amor familial.
Voltemos à questão das alterações ortográficas. Quando as crianças erram ou nós, em fase adulta, erramos, isso, a rigor, não é um “erro” contra a grafia, porque tal grafia, na nossa variação escrita e pessoal, é uma possibilidade real, uma hipótese possível, a que postularia aqui como uma espécie de homonímia enviesada da língua escrita.
Dizendo de outro modo: uando escrevo “caza” em vez de casa, “pretensão” por pretensão, “exceção” por exceção e assim por diante, se notarmos bem, a escrita desviada do padrão gramatical não vai gerar ou acarretar, a partir da escrita ortográfica produzida pelo usuário da língua, uma pronúncia ou produção de fonemas diferentes, uma vez que as letras e grafemas (acentos gráficos, por exemplo) que representam os fonemas ou sons da fala, nos casos acima, reproduzem fielmente a maneira como articularíamos a palavra na forma ortográfica correta no nosso dialeto. Quando a grafia errada se distancia do que produziríamos na fala, isso ocorre porque o falante, no uso individual da língua, isto é, na sua expressão oral, já produz uma fala defeituosa e, apenas, na escrita, transfere a sua disortografia (dificuldade de ortografar).
Retomando à queixa do tio, e relendo seu relato enviado para minha apreciação docente, não descartaríamos, de logo, que a criança apresenta déficit de memória, acarretando, assim, dificuldade de cópia e na grafia das palavras. A escola tem levado muito em conta que sem memória não há aprendizagem e que a aprendizagem eficaz vem da e é assegura pela memória de longo prazo.
O fato de a criança não escrever ou transcrever corretamente da lousa para seu caderno acentos gráficos ou sinais de nasalização, também, tal desvio ou omissão indica outras dificuldades lingüísticas, não apenas na grafia de palavras mas no uso ou emprego dos sinais diacríticos (til, cedilha, agudo, circunflexo, hífen etc) que representam os elementos fonéticos da língua, e mais do que isso, tal esquecimento ou lapso pode ser um índice de dificuldade específica de leitura. Há uma relação muito estreita entre dificuldade de leitura e dificuldade de ortografia, entre dislexia e disortografia. Mas, ao contrário do que se possa imaginar, é a ortografia que mais ajuda na leitura.
Outro ponto a assinalar, a partir do relato do tio, é o seguinte: em geral, crianças com déficit de memória ou deficiente léxico ortográfico têm dificuldade de fazer a correspondência entre grafemas (letras, sinais diacríticos) e fonemas (vogais, consoantes e semivogais). Seja como for, por trás das dificuldades específicas de escrita ortográfica está a falta de consciência fonológica, isto é, o desconhecimento do princípio alfabético regente na relação entre grafemas-fonemas, ou de escrita-fala.
Vejam bem o que até aqui estou postulando sobre as alterações ortográficas: se a criança não apresenta déficit visual, ou seja, se sua acuidade visual é boa, não tem retardo ou comprometimento neurológico ou mesmo privação cultural ou escolar, então, por exclusão, podemos levantar a hipótese de déficit de memória associada à disortografia (má ortografia).
São muitos os exercícios compensatórios para amenizar ou mesmo superar as dificuldades ortográficas por determinantes pedagógicos ou dispedagógicos. Claro, no presente artigo, seria impraticável um exemplário exaustivo, de modo que vamos nos limitar aqui a algumas dicas didáticas em sala de aula regular: quando seu filho, sobrinho ou aluno, escrever uma palavra errada, peça-lhe que se sente à mesa ou à carteira, abra o dicionário e procure (inicialmente com sua ajuda, professor ou pais) a palavra da forma como a escreveu. Claro, como está errada não irá encontrar a palavra na forma com a grafou. Em seguida, peça-lhe que capture a palavra e quando encontrá-la a copie da forma como a encontrou no dicionário, ou seja, corretamente, observando em que parte fez permuta ou omitiu letras ou signos diacríticos e mais, solicite a criança que copie também todas as palavras- irmãs (nós chamamos essas palavras de cognatas, isto é, que têm a mesma raiz ou significado literal) da palavra que apresentou dificuldade em grafar corretamente.
Um novo pedido à criança será o de transcrever a série de palavras cognatas, em coluna, da mesma forma e seqüência que aparece no dicionário. Pode o professor, educador ou pai, sugerir, por exemplo, para melhor fixação da memória do educando, que utilize cores diferentes (o azul e o vermelho) para sublinhar a palavra (vermelho) e transcrever, em azul, sua definição ou significado literal. Se o educador quiser tornar ainda mais eficiente essa pesquisa ortográfica, deve sugerir que o aluno faça a divisão silábica da palavra coletada no dicionário.
Dessa maneira, indo ao dicionário para capturar a grafia correta, vai o aluno fortalecer seu léxico ortográfico e semântico. Copiar uma lista ou série de palavras ajuda, e muito, a criança a estocar a forma correta. Guardamos, enfim, na memória ortográfica, tudo que é organizado. Daí, a importância do dicionário, uma memória cultural a e histórica da civilização.
Lapsogramas - Na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em Sobral, onde criei, em 2005, a disciplina “Dificuldades em Ortografia”, no Curso de Letras, somente para estudar as dificuldades específicas em ortografia, tenho adotado o termo lapsogramas para as alterações ortográficas dos alunos (o neologismo é dos lingüistas cubanos). O que denominamos erros ortográficos muitas vezes não passam de lapsos de representação fonêmica ou lapsos de língua como diria Freud.
Entre diversas propostas de atividades didáticas com fins de intervenção psicolingüística, envolvendo professor ou especialista em ortografia (revisores de textos escolares) e alunos que apresentam alterações na grafia padrão da língua portuguesa, temos sugerido procedimentos como:
a)Pauta de Autocorreção Ortográfica (PAO) – A partir dos lapsogramas coletados nas pesquisas ortográficas, o professor ou especialista em ortografia elabora uma Pauta de Autocorreção Ortográfica, que consistirá em colocar um mesmo número sob cada tipo de erro ou lapso ortográfico. Em uma folha à parte, em forma de planilha, o professor escreve o critério de resposta correta que explique o número colocado sob cada palavra. Por exemplo, o professor escreve: “Revise sua escrita (ou grafia) com base no seguinte: O número 1 corresponde à aplicação da seguinte regra:” “A letra s representa o fonema /z/ quando é intervocálica, como em asa, mesa, riso”. Para esta atividade, o professor e os alunos podem se apoiar nas regras estabelecidas pelo Formulário Ortográfico ou pelas gramáticas normativas escolares.
b)Elaboração de um Inventário de Lapsogramas de Uso Freqüente –O professor deve, no seu cotidiano escolar, elaborar um inventário progressivo, em ordem alfabética, de palavras com dificuldades ortográficas observadas nas produções dos alunos (ou seja, lapsos verificados em todos os trabalhos dos alunos). Em seguida, o professor, à luz dos ensinamentos lingüísticos, deve levantar hipóteses lingüísticas (falta de consciência fonológica, por ex) ou psicolingüísticas (déficit de memória, por ex) para explicação das alterações ortográficas.
c)Realização de Jogos Ortográficos – O professor poderá trabalhar bem com as alterações ortográficas ao realizar jogos ortográficos a partir dos lapsogramas obtidos na produção escrita (redações escolares) de seus alunos.Um jogo bastante eficaz é o de Palavras cruzadas com pelo menos 20 palavras que apresentam freqüentemente alterações ortográficas no ditado de palavras.Uma outra atividade didática é o de incentivar, de forma lúdica, os alunos a identificarem raízes de palavras e a procurarem a história ou a origem das palavras que mais apresentam alterações ortográficas no ditado de palavras. Ainda nesta atividade, pode ser agregada a iniciativa de levar os alunos a criarem novas palavras ou a utilizarem prefixos e sufixos com os radicais, e a constatar seu efeito no significado dos neologismos.

Sugestões de leitura sobre o assunto:
1.CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização & lingüística. 5ª ed. São Paulo: Scipione, 1992. pp. 95-146.
2.CARVALHO, Marlene. Guia prático do alfabetizador. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1999.
3.CRYSTAL, David. Dicionário de lingüística e fonética.Tradução e adaptação de Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
4.FARACO, Carlos Alberto. Escrita e alfabetização: características do sistema gráfico do Português. São Paulo: Contexto, 1192. (Coleção Repensando a Língua Portuguesa)
5.GOULANDRIS, Nata K. Avaliação das habilidades de leitura e ortografia. In SNOWLING, Margaret: STACKHOUSE, Joy. Dislexia, fala e linguagem: um manual do profissional. Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 2004. pp.91-120.
6.GUIMARÃES, Gilda; ROAZZI, Antonio. A importância do significado na aquisição da escrita ortográfica. In MORAIS, Artur Gomes. (org). O aprendizado da ortografia. 3ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. (Linguagem e Educação, 4). pp.61-75.
7.LEAL, Telma Ferraz; ROAZZI, Antonio. A criança pensa...e aprende ortografia. In MORAIS, Artur Gomes. (org). O aprendizado da ortografia. 3ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. (Linguagem e Educação, 4).pp.99-120.
8.LEMLE, Mirim. Guia teórico do alfabetizador. 6ª ed. São Paulo: Ática, 1991.
9.LLOP, Mario Pujol. Análisis de errores grafemáticos en textos libres de estudiantes de enseñanzas medias. Disponível em Internet: http://www.tdx.cesca.es/TDX-0906104-115216/. Acessado em 18/05/2005.
10.MASSINI-CAGLIARI, Gladis; CAGLIARI, Luiz Carlos. Diante das letras: a escrita na alfabetização. Campinas, SP: Mercado de Letras/ALB/Fapesp, 1999. (Coleção Leituras no Brasil)
11.MIYARES, Eloína; RUIZ, Vitelio. Vacuna ortográfica: val-Cuba. Nível primario. Metodologia pra prevenir y erradicar las faltas de ortografía. Habana: EdA, 1999.
12.MONTEIRO Ana Márcia Luna. “Sebra-ssono-pessado-asado”. O uso do “s” sob a ética daquele que aprende. In MORAIS, Artur Gomes. (org). O aprendizado da ortografia. 3ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. (Linguagem e Educação, 4). pp.43-60.
13.MORAIS, Artur Gomes de. “Por que gozado não se escreve com u no final?” – os conhecimentos explícitos verbais da criança sobre a ortografia. In MORAIS, Artur Gomes. (org). O aprendizado da ortografia. 3ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. (Linguagem e Educação, 4).pp. 77-98.
14.MORAIS, Artur Gomes de. Escrever como deve ser. In TEBEROSKY, Ana; TOLCHINSKY, Liliana. (orgs.). Além da alfabetização: a aprendizagem fonológica, ortográfica, textual e matemática. Tradução de Stela Oliveira. São Paulo: Ática, 1996. pp. 61-84.
15.MORAIS, Artur Gomes de. Ortografia: este peculiar objeto de conhecimento. In MORAIS, Artur Gomes. (org). O aprendizado da ortografia. 3ª ed. 1ª reimp. Bel.o Horizonte: Autêntica, 2003. (Linguagem e Educação, 4). pp.7-19.
16.MORAIS, Artur Gomes. (org). O aprendizado da ortografia. 3ª ed. 1ª reimp. Bel.o Horizonte: Autêntica, 2003. (Linguagem e Educação, 4).
17.MUTTER, VALERIE. Antevendo as dificuldades de leitura e de ortografia das crianças. In SNOWLING, Margaret: STACKHOUSE, Joy. Dislexia, fala e linguagem: um manual do profissional. Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 2004. pp. 43-56.
18.REGO, Lucia Lins Browne; BUARQUE, Lair Levi. Algumas fontes de dificuldade na aprendizagem de regras ortográficas. In MORAIS, Artur Gomes. (org). O aprendizado da ortografia. 3ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. (Linguagem e Educação, 4).pp. 21-41.
19.SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia prático de alfabetização: baseado em princípios do sistema alfabético do Português do Brasil.São Paulo: Contexto, 2003.
20.SCLIAR-CABRAL, Leonor. Princípios do sistema alfabético do Português do Brasil.São Paulo: Contexto, 2003.
21.SILVA, Cínara Santana da; BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi. Reflexões sobre o ensino e a aprendizagem da pontuação. In MORAIS, Artur Gomes. (org). O aprendizado da ortografia. 3ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. (Linguagem e Educação, 4). pp. 121-139.
22.SNOWLING, Margaret: STACKHOUSE, Joy. Dislexia, fala e linguagem: um manual do profissional. Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 2004.
23.TEBEROSKY, Ana; TOLCHINSKY, Liliana. (orgs.). Além da alfabetização: a aprendizagem fonológica, ortográfica, textual e matemática. Tradução de Stela Oliveira. São Paulo: Ática, 1996.
24.ZORZI, Jaime Luiz et ali. “A influência do perfil de leitor nas habilidades ortográficas”. Disponível em Internet: http://www.cefac.br/library/artigos/9ac5bcbbebadbc2160e2c7869d4890b7.p df. Acessado em 18/05/2005.
25.ZORZI, Jaime Luiz. “As inversões de letras na escrita o "fantasma" do espelhamento”. Disponível na http://www.cefac.br/library/artigos/3c269d1d920ea45f9274741052c717a4.pdf. Acessado em 18/05/2005.
26.Zorzi, Jaime Luiz. “As trocas surdas sonoras no contexto das alterações ortográficas”. Disponível em Internet http://www.cefac.br/library/artigos/84be6bc992b278e8e958a7523bb43ff1.pdf. Acessado em 18/05/2005.
27.ZORZI, Jaime Luiz. “Una secuencia de apropiacion de la ortografía del portugués”. Disponível na Internet: http://www.cefac.br/library/artigos/2b91dd8f0dbf2cd057e64d3405246a47.pdf. Acessado em 18/05/2005.
28.ZORZI, Jaime Luiz. Aprender a escrever: a apropriação ao sistema ortográfico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
29.ZORZI, Jaime Luiz. Aprendizagem e distúrbios da linguagem escrita: questões clínicas e educacionais. Porto Alegre: Artmed, 2003.


Vicente Martins é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú(UVA), em Sobral, Estado do Ceará. E-mail: vicente.martins@uol.com.br

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